Na Unidade Básica de Saúde São João, referência na rede de assistência básica de saúde em Natal, a diretora Ana Lúcia Monteiro vivenciou uma mudança nos últimos cinco anos: se antes a distribuição semanal das fichas para consultas médicas se esgotava em quatro dias, hoje leva apenas dois. O aumento da demanda da unidade coincide com a saída de 24,2 mil pessoas dos planos de saúde em Natal, entre os anos de 2015 e 2019. A situação reverbera em toda rede do Sistema Único de Saúde (SUS): no mesmo período, os registros mostram um aumento de 58% de procedimentos clínicos na rede de saúde pública municipal de Natal.
Em Natal, o número de pessoas com plano de saúde passou de 318 mil para 294 mil em quatro anos. A cidade concentra a maior parte dos beneficiários do Rio Grande do Norte. Atualmente, o número de pessoas com plano de saúde em todo estado é de 496 mil, 28 mil a menos que em 2015 (525 mil). Segundo especialistas em gestão de saúde, parte dessas pessoas passaram a procurar o SUS para receber assistência médica, o que contribui para o aumento na quantidade de atendimentos realizados.
Somente de consultas médicas, atendimentos e acompanhamentos em Natal, foram 4,1 milhões de registros em 2019, 1,5 milhão a mais do que em 2015. São serviços de baixa e média complexidades, geralmente realizados em clínicas particulares por quem possui plano de saúde. Fatores como surtos de doenças também influem sobre o número, mas a percepção dos profissionais é de que cada vez mais pessoas cancelam os planos privados e recorrem à saúde pública por uma questão financeira.
Por semana, 530 consultas de rotina (geral, ginecologia e pediatria) são disponibilizadas pela Unidade Básica São João. “Antes, eu levava quatro dias para esgotar essas fichas, mas hoje isso leva dois dias. O que menos mudou foram as consultas de pediatria porque planos de saúde para crianças são mais baratos, mas o número de pré-natal, ginecologia e consultas com clínico geral aumentou muito. O maior gargalo do plano de saúde são os adultos”, relata a diretora da unidade, Ana Lúcia Monteiro.
No corredor lotado da unidade, a comerciária Patrícia Gerônimo conta que cancelou o plano de saúde há cinco anos, depois de atingir o reajuste obrigatório de faixa etária (os planos de saúde fazem um reajuste a cada quatro anos de vida, até o beneficiário atingir 59 anos). “Se tornou muito caro. Foi prioridade de gastos.”
Mãe de uma filha única e sócia de uma loja de roupas íntimas em Natal, Patrícia conta que escolheu cancelar o plano de saúde para manter o da filha, o aluguel da loja e o de casa. “O preço foi o principal fator. Manter o meu e o da minha filha é impossível e o serviço acaba sendo semelhante ao da rede básica: você perde o dia inteiro na clínica. No posto de saúde eu também espero, mas não tenho problemas para marcar”, conta.
Na avaliação do professor Hedson Costa, da Escola de Gestão da Universidade Potiguar (UnP), medidas como essa são comuns nos cenários de crise econômica, onde o desemprego aumenta e o poder de compra das famílias diminui. A recessão no Brasil a partir de 2015 acabou por contribuir com o cenário, aliada ao aumento das taxas dos planos.
O problema se estende em toda rede de saúde pública. Referência na assistência básica em Natal e localizada em uma área de classe média, a Unidade São João não consegue se adaptar totalmente ao aumento da demanda. “Eu tenho pedido mais médicos e recebi uma pediatra no fim do ano passado, mas não tenho como aumentar o número de atendimentos porque cada médico tem carga horária e um número de consultas”, afirma a diretora.
Apesar do SUS ser uma saída para os atendimentos de baixa e média complexidade, os de alta complexidade, como internações e cirurgias, são um desafio para quem não possui plano de saúde por causa da sobrecarga existente no sistema. Na manhã desta terça-feira (4), por exemplo, o principal hospital público do Estado, o Walfredo Gurgel, amanheceu com 96 pacientes nos corredores.
Patrícia Gerônimo tenta há meses realizar uma cirurgia através do SUS, mas não consegue vaga. Por outro lado, os custos de pagar por esse tipo de procedimento na rede particular é inviável. A solução encontrada foi voltar a procurar novos planos de saúde. “Estou fazendo uma pesquisa de mercado para ver o que posso fazer”, afirma.
Clínicas populares são alternativas
Uma brecha aberta entre a retração do mercado de planos de saúde e a sobrecarga do SUS foi preenchida com um novo tipo de segmento de mercado: as clínicas a preços mais acessíveis. Esses estabelecimentos ganharam o nome de “clínicas populares” e costumam cobrar um valor entre R$ 80 a R$ 100 nas consultas. O segmento começou a ganhar popularidade a partir em 2017 no Brasil, período que coincide com a recessão econômica e queda de beneficiários do plano de saúde. Em Natal, algumas empresas nesse ramo se expandiram.
O modelo é visto em parte como uma alternativa que garante o acesso à saúde de quem não pode pagar um plano e quer um atendimento mais rápido, fora do SUS. Entretanto, no fim de 2017 o Conselho Federal de Medicina editou uma resolução para impedir que a assistência à saúde se transformasse em um mercado desregulado. Foram vetadas promoções relacionadas ao fornecimento de cartões de descontos, fidelidade ou similares. A divulgação de preços ou formas de pagamento de procedimentos só são permitidos dentro dos estabelecimentos.
Um estudo feito pela Universidade de São Paulo no fim de 2018 aponta que as novas clínicas acabam competindo com o SUS ao estimular que o setor privado supra a demanda por um serviço a que a população deveria ter acesso gratuito. O sociólogo Ricardo Lima, autor do estudo, considera o sistema um ‘paliativo’ para os casos urgentes, mas que ao ser muito utilizado se torna tão caro quanto os planos de saúde. E aí o paciente retorna para o SUS, precisando refazer todo caminho.
Em Natal, uma empresa nasceu no fim de 2017 e rapidamente se expandiu com clínicas nos bairros da Cidade Alta e Alecrim. O sócio Berger Forter, afirmou à TRIBUNA DO NORTE em 2018 que a média de atendimentos mensais chegou a 800 por unidade. A principal vantagem, contou, é não precisar realizar marcações, como nos planos de saúde e no SUS.
Levantamento
A reportagem não considerou no levantamento os procedimentos de alta complexidade, como internações e cirurgias. Segundo especialistas consultados, muitas razões influenciam fortemente nesses casos, como número de acidentes e violência urbana. O levantamento foi realizado somente em Natal e não em todo Rio Grande do Norte para evitar possíveis equívocos, já que a responsabilidade da atenção básica é municipal e não estadual.
Rio Grande do Norte – Beneficiários de planos de saúde
2015 – 525.233
2016 – 499.119
2017 – 495.218
2018 – 500.802
2019 – 496.773
Natal – Consultas, atendimentos e acompanhamentos na rede municipal de saúde
2015 – 2.628.512
2016 – 2.834.793
2017 – 3.310.980
2018 – 4.446.634
2019 – 4.172.846
Beneficiários de planos de saúde
2015 – 318.769
2016 – 305.848
2017 – 300.459
2018 – 299.608
2019 – 294.538
Fonte: DataSUS e ANS
*Tribuna do Norte