Milhões de doses de vacina contra o coronavírus em todo o mundo podem expirar

Novavax anuncia eficácia de 89% de vacina para covid-19 em teste final -  28/01/2021 - UOL VivaBem

Por meses, uma geladeira em uma instalação do governo na cidade holandesa de Leiden abrigou cerca de 90 pequenas caixas brancas com milhares de dólares em doses da vacina Oxford/AstraZeneca. Mas, na maioria delas, uma data inviabiliza os imunizantes: elas expiram em agosto de 2021. O problema se repete pelo mundo. Sem que haja um cálculo preciso, casos como na Holanda, nos EUA e na África mostram que são milhões de vacinas desperdiçadas, enquanto apenas 16% da população mundial foi totalmente imunizada, segundo o Our World in Data.

Para Dennis Mook-Kanamori, um médico do Centro Médico da Universidade de Leiden que até recentemente administrava vacinas lá, o vencimento de milhares de doses é trágico. O que realmente o irrita, no entanto, é que o governo holandês está decidido a deixar as doses expirarem, em vez de enviá-las para o exterior. “É uma atitude elitista e decadente”, disse.

A situação se reflete em inúmeros freezers, geladeiras e centro logísticos em todo o mundo, à medida que milhões de doses de vacina contra o novo coronavírus, desenvolvidas em velocidade recorde, marcham silenciosamente em direção ao vencimento antes de poderem ser usadas. E à medida que a demanda diminui em nações ricas como a Holanda, mais poeira se junta – e mais doses estão expirando.

Grande parte do mundo ainda não viu doses suficientes para vacinar até mesmo os mais vulneráveis. Em toda a África, no final do mês passado, apenas 2,2% das pessoas haviam recebido pelo menos uma dose, enquanto a Holanda vacinou bem mais da metade de sua população. O governo holandês, dono das doses, disse que por razões legais e logísticas elas não podem ser exportadas, apesar das críticas dos médicos holandeses.

Embora os programas de vacinação sempre tenham algum desperdício, mesmo os níveis padrão significam um número impressionante de doses não utilizadas na escala da vacinação global contra o coronavírus. Mas apenas quantas doses já expiraram, ou estão prestes a expirar, não está claro.

“Não há ninguém que monitore as doses expiradas sistematicamente”, disse Prashant Yadav, especialista em cadeias de suprimentos de saúde do Center for Global Development, um centro de estudos. Em vez disso, a informação gotejou em notícias e declarações oficiais pouco divulgadas.

Em Israel, 80 mil doses vencidas da Pfizer/BioNTech foram programadas para serem descartadas no final de julho; 73 mil doses de vários fabricantes foram descartadas na Polônia; e 160 mil doses de Sputnik V prestes a expirar foram devolvidas da Eslováquia para a Rússia, seu destino final é desconhecido. Nos Estados Unidos, estima-se que apenas a Carolina do Norte tenha 800 mil doses prestes a expirar.

De acordo com dados compilados pela Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 469.868 doses de vários fabricantes haviam expirado na África em 9 de agosto. “A maioria das vacinas que chegam têm uma data de validade muito curta”, disse Richard Mihigo, coordenador de imunização e desenvolvimento de vacinas para o braço da OMS na África.

A falta de dados globais mascara o preço. Só nos Estados Unidos, as estimativas do total de doses expiradas ou quase expiradas chegam a milhões. Com algumas vacinas custando até US$ 20,00 (mais de R$ 104,00) por dose, o custo pode chegar a dezenas de milhões de dólares, se não mais.

O preço para a saúde humana pode ser ainda mais grave. “As doses que temos não são suficientes”, disse Lawrence Gostin, professor de direito da saúde global na Universidade de Georgetown. “Eles estão expirando, estão estragando com a falta de eletricidade, não estão sendo entregues à população. É uma catástrofe total.”

Por que as vacinas vencem?

As vacinas geralmente se degradam a uma taxa mais elevada do que muitas outras drogas que podem ser armazenadas, como o Tamiflu, que pode ser armazenado por anos, de acordo com Jesse Goodman, professor da Georgetown School of Medicine e ex-cientista-chefe do FDA americano.

Conforme as doses envelhecem, elas “podem não gerar a mesma resposta imunológica”, disse Goodman, transformando uma inoculação forte e potencialmente salvadora de vidas em um fracasso enfraquecido. E as vacinas de mRNA, como as desenvolvidas pela Pfizer e Moderna, são particularmente frágeis.

As datas de validade são definidas pelo fabricante e aprovadas pelas autoridades regulatórias locais. Muitas vacinas contra o novo coronavírus receberam autorização inicial para uso emergencial quando apenas seis meses de dados estavam disponíveis, resultando em datas de validade cautelosamente curtas.

Em uma declaração ao The Washington Post, a OMS disse que, ao contrário do “desperdício de frasco aberto” – onde frascos de vacina multidoses eram abertos, mas não podiam ser usados -, o “desperdício de frasco fechado”, pela validade, era “evitável”. Em geral, o órgão de saúde global disse, é recomendado manter todo o desperdício de vacina abaixo de 1%.

Isso pode não ser uma tarefa fácil. Dados compilados pela Aliança Global de Vacinas (Gavi) sobre imunizantes não coronavírus mostram que o desperdício pode chegar a 10% e às vezes muito mais alto.

Usar ou perder?

Marco Blanker, médico da cidade holandesa de Zwolle, disse que teve que descartar 58 doses em um dia devido ao não comparecimento de pacientes em meio à publicidade negativa sobre a vacina AstraZeneca.

“Foi devastador para a equipe”, disse ele. “Fizemos todo o possível nas semanas anteriores para não haver derramamento – não perdemos uma gota.”

Blanker postou uma foto das doses descartadas no Twitter, gerando um debate público na Holanda. Logo outros médicos holandeses se uniram para criar um aplicativo para ajudar a redistribuir as doses.

A demanda na Holanda acabou diminuindo. O país tem agora 55% da população totalmente vacinada e a AstraZeneca é recomendada apenas para determinadas faixas etárias. Então Blanker e outros médicos, como Mook-Kanamori, começaram a procurar outras nações que pudessem aceitar as doses.

Namíbianação da África Ocidental lutando por doses, parecia um bom destino. Houve até um médico holandês que disse que estava disposto a levá-los pessoalmente, disse Mook-Kanamori. Mas o governo holandês manteve a mesma posição: as doses devem ser descartadas após expirarem.

O Ministério da Saúde holandês não respondeu a um pedido de comentário. A Holanda se comprometeu a doar outras doses de vacinas, incluindo 75 mil doses de AstraZeneca para a Namíbia.

‘Nós simplesmente não tivemos tempo suficiente’

Mesmo quando as doses vão para os necessitados, as datas de validade podem representar problemas. Em toda a África, a maioria dos países adaptou o calendário em torno de uma janela de entrega de três a quatro meses, disse Mihigo. Mas os atrasos no embarque forçaram alguns a enfrentar períodos mais curtos.

Benin descartou 51 mil doses em julho, depois de lutar por três meses para entregá-las, disse Landry Kaucley, diretor de logística de vacinas do país. O medo das vacinas persistiu depois que as nações europeias interromperam as implementações para investigar os riscos de coágulos sanguíneos.

Outros países deram um passo adiante. No Malawi, o governo queimou quase 20 mil doses expiradas da AstraZeneca em maio, no que as autoridades locais disseram ser uma medida para mostrar ao público que não receberiam as doses expiradas. Algumas autoridades de saúde, como a Autoridade Palestina, recusaram-se a aceitar doses que disseram estar perto do vencimento.

As datas de expiração podem mudar. O FDA no mês passado estendeu o prazo de validade da vacina da Janssen nos Estados Unidos de 4 meses e meio para seis meses. Um representante do Fundo Russo de Investimento Direto disse que esperava que o vencimento do Sputnik V aumentasse de seis meses para um ano. Esses movimentos podem ajudar a recuperar as doses.

Alguns especialistas esperam ver o Covax facility, o mecanismo de compartilhamento de vacinas apoiado pelas Nações Unidas, ou acordos bilaterais ajudarem a mover as doses da vacina para onde precisam estar antes de expirarem. Mas encontrar uma maneira de dividir as doses não é realmente o problema, de acordo com médicos como Mook-Kanamori.

“Posso levar 8 mil vacinas embaixo do braço para a Namíbia na próxima semana, se houver vontade”, explicou ele. “O problema é que não existe vontade.”

Estadão

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