Fim da Rouanet causaria apagão em orquestras, museus e peças

LOCAL E DATA DESCONHECIDA: Música: o regente Roberto Minczuk, durante apresentação com a Orquestra Sinfônica Brasileira, (Foto: Cícero Rodrigues/Divulgação) ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***

Alvo de recentes e acaloradas discussões, a Lei Rouanet tem sido fortemente criticada por parte da sociedade e da classe política, havendo mesmo quem defenda a extinção do mecanismo, hoje o principal instrumento federal de incentivo às artes.

A retórica ganhou força com a eleição de Jair Bolsonaro, já que muitos expoentes da direita que apoiaram o presidente eleito, como o grupo MBL e o deputado federal eleito Alexandre Frota (PSL), pregam pela sua revogação.

“Não só há centralização, como há decisões tendenciosas que levam grupos e grandes empresas a ter monopólio dos patrocínios”, disse Frota sobre as leis de incentivo. Ele também já se referiu a uma suposta “farra que ocorreu no setor nos últimos anos”.

Mas o eventual fim da lei, dizem produtores ouvidos pela Folha, poderia gerar um apagão na produção artística e acabar com a estrutura de economia cultural —ou seja, os empregos gerados pelo setor, a circulação de capital e o impacto financeiro de atividades artísticas— que se criou no país nas últimas décadas.

Memes da Rouanet

“Se a Lei Rouanet deixar de existir, importantes instituições vão ter problemas: Masp, Osesp, Filarmônica de Minas Gerais, Grupo Corpo, além de iniciativas de restauro de patrimônio histórico. Significa uma situação de paralisação na cultura brasileira”, diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural e vice-presidente da Fundação Bienal de São Paulo.

Segundo a advogada Cris Olivieri, consultora para a arte e a cultura, “a revogação seria uma retração, já que não existe um projeto de política cultural para o país” e não há mecanismos para substituí-la. Fora que a legislação “permite uma quantidade infinita de programação gratuita nas maiores instituições e museus nacionais”.

Museus, peças teatrais, projetos musicais e de patrimônio muitas vezes compõem boa parte de seu orçamento com recursos obtidos via lei, que permite a patrocinadores descontarem de seu Imposto de Renda os valores destinados a projetos culturais.

A Pinacoteca do Estado de São Paulo, por exemplo, obtém 40% de sua verba anual pela Rouanet —para o ano que vem, o museu foi autorizado a captar R$ 16 milhões.

Tais recursos, diz Paulo Vicelli, diretor de relações institucionais da Pinacoteca, tornaram possíveis mostras como a do escultor Ron Mueck e a coletiva “Mulheres Radicais”, atualmente em cartaz.

Os musicais, que desde 2000 vêm crescendo e gerando um mercado no país, também recorrem à lei para pôr de pé a estrutura de espetáculos. No caso de “A Pequena Sereia”, versão da Disney montada em São Paulo no início do ano, 90,6% de seu orçamento (R$ 10,9 milhões) foi composto com recursos via Rouanet.

É consenso entre produtores que o mercado de musicais, que gera em média cem empregos diretos por peça, não se sustentaria sem a lei.

“Houve uma profissionalização enorme do setor, mas sem o incentivo a economia dele acaba”, comenta Eduardo Barata, presidente da APTR (Associação dos Produtores de Teatro). “Muitas vezes a bilheteria não mantém uma peça.”

De fato, a área de artes cênicas (que engloba dança, circo, teatro e, eventualmente, escolas de samba) representa a maior fatia da Rouanet.

No ano passado, ela significou 37,93% de todos os valores captados via lei (cerca de R$ 1,2 bilhão). Logo na sequência aparecem música (21,54%), artes visuais (13,49%) e patrimônio cultural (12,73%).

Críticos do mecanismo falam em rombos de cofres públicos e artistas que “mamam nas tetas do governo” com a lei. Mas um estudo coordenado há dois anos por Henilton Menezes, ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, mostrou que 70% dos projetos realizados são de pequeno porte, de até R$ 500 mil.

A Rouanet representa uma fatia pequena de todas as leis de renúncia fiscal no país: apenas 0,5% do que o Brasil deixa de arrecadar em impostos com programas de incentivo. Já o setor de comércio e serviço é responsável por 27,63% de todas as renúncias fiscais.

E o retorno financeiro costuma ser grande. Um estudo da Fundação Getúlio Vargas sobre a última Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) mostrou que os impostos recolhidos pelo governo durante o evento, R$ 4,7 milhões, foram superiores aos R$ 3 milhões de isenção fiscal que patrocinadores da festa obtiveram pela Rouanet.

Além disso, a Flip gerou um impacto econômico de R$ 46,9 milhões —gastos dos turistas com hotéis, transporte, restaurantes e recursos para atender a essa demanda, como fornecimento de alimentos, serviços bancários e geração de postos de trabalho.

Já um levantamento da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro mostra que os setores econômicos ligados à cultura recebem investimento anual de cerca de R$ 1,4 bilhão, somando Rouanet e leis de audiovisual, e respondem por 2,64% do PIB.

É um retorno maior do que o de outros setores, como a indústria automobilística, que recebe em média R$ 7 bilhões ao ano em incentivos fiscais e representa 4% do PIB.

Não que inexistam problemas. Muito se critica que os projetos aprovados se concentram no Sudeste e que há muita demora para prestar contas e fiscalizar as propostas.

João Leiva, diretor da JLeiva, consultoria especializada em cultura e esporte, ressalta ainda que a lei impede patrocínios de empresas de lucro presumido (em geral, de porte menor). E que justamente elas teriam perfil para custear trabalhos pequenos e médios.

Além disso, só uma das três funções da Rouanet, a do mecenato, que diz respeito aos patrocínios via renúncia fiscal, tem funcionado. Os Ficarts, fundos para a economia criativa, nunca saíram do papel.

Já o Fundo Nacional de Cultura, mecanismo que tentaria equilibrar a distribuição regional da lei, teria recurso previsto de 3% do valor das loterias, mas o repasse não é feito há ao menos seis anos—o total supera R$ 1,5 bilhão.

Fora alguns casos de forte repercussão negativa. Como quando a cantora Maria Bethânia conseguiu, em 2011, autorização do Ministério da Cultura para captar R$ 1,3 milhão e criar um blog. Ou quando a colega Claudia Leitte teria descumprido as regras de distribuição de ingresso, e a pasta exigiu, em 2016, que ela devolvesse R$ 1,2 milhão captados para uma série de shows.

No entanto, há muita desinformação e notícias falsas, que geram críticas. Caso do boato de que Chico Buarque viveria em Paris às custas da Rouanet —o artista nunca usou a lei.

“A demonização da lei é um equívoco”, afirma Pedro Machado Mastrobuono, vice-presidente da Comissão de Direito às Artes da OAB-SP. “Defender a revogação da Rouanet por causa de escândalos é tão sem sentido quanto defender o fim da merenda escolar em função de desvios de verbas em prefeituras.”

Ex-ministra da cultura, a senadora Marta Suplicy (MDB) reforça que “as pessoas precisam ser esclarecidas sobre o que é verdade ou barulho”, e concorda com a necessidade de mudanças. “Num país como o nosso, com tão parcos recursos, poderia ser pensado um limite para cada segmento, com compensação para incentivar mais regiões, artistas iniciantes e novas experiências”, ela afirma.

Para a advogada Cris Olivieri, grande parte das críticas vem de uma crença de que a lei seria partidária. Ela diz que a maioria dos projetos para captação de recursos normalmente vem “de quem trabalha com o segmento” e são projetos sem qualquer interferência política. “Não tem que ser amigo de ninguém do PT para ter projeto aprovado.”

O debate e a polarização política foram ainda mais acirrados nas últimas eleições. O deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente eleito Jair Bolsonaro, escreveu em suas redes sociais sobre as críticas de artistas ao pai: “Se não existisse Lei Rouanet —que é dinheiro nosso— você acredita que essa ‘claque de artistas’ apoiaria PT/PSOL?”.

O presidente eleito não disse que acabaria com a lei —afirmou que, em seu governo, a legislação beneficiará apenas artistas em início de carreira e com pouca estrutura—, mas sua vitória causou discussões sobre os rumos da cultura.

Tanto que alguns produtores têm conversado com deputados para discutir no Legislativo projetos para as artes por meio da chamada Frente Parlamentar da Cultura, uma associação suprapartidária que pretende ser formalizada no início do ano que vem.

“A ideia é, da mesma maneira que existe uma bancada evangélica e uma ruralista, formar uma bancada da cultura”, diz Eduardo Barata, presidente da APTR (Associação dos Produtores de Teatro).

Ali seriam discutidas legislações para a área e o destino do Ministério da Cultura, que pode ser fundido a outra pasta no próximo governo —um dos temores da classe artística. “Com a fusão, não sabemos se as comissões [para a cultura] continuam”, diz Barata.

“A gente espera que o novo governo não confunda a cultura com partido político e que entenda a importância das artes para a sociedade. E que o Poder Legislativo seja o grande baluarte que nos proteja do retrocesso”, continua.

Outra demanda, diz Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural que também defende a necessidade de aprimorar o incentivo fiscal, é rediscutir o papel das entidades vinculadas ao Ministério da Cultura, entre elas a Funarte, responsável por determinar políticas para as artes e hoje vivendo precariedade e falta de recursos.

Mas os receios não se restringem a mudanças de estrutura ou legislações. “A grande preocupação é a censura, direta ou indireta”, na opinião de Francisco C. Martins, vice-presidente da Apaci (Associação Paulista de Cineastas).

“Movimentos que apoiaram Bolsonaro, como o MBL, tentaram impedir certos eventos [como a exposição ‘Queermuseu’]. É de se perguntar se o governo dele será autoritário ou respeitará a Constituição.”

O audiovisual é a área que conseguiu se estruturar de forma mais perene no país. Fora festivais, como a Mostra Internacional de Cinema e o Anima Mundi, referência em animação, produções cinematográficas não costumam depender da Lei Rouanet para manter suas edições anuais.

A área é regida em torno de várias leis e de uma agência reguladora (a Ancine) e, portanto, mais imune aos humores dos diferentes governos.

Para provocar mudanças na forma como os filmes brasileiros são feitos, o novo presidente teria de mexer na independência da Ancine, a Agência Nacional do Cinema.

“Ele não falou sobre o assunto. Mas, se a atividade audiovisual for parar dentro da pasta da Educação e ela for ocupada por um militar, podemos cair num tipo de produção direcionada, temática”, comenta Vera Zaverucha, ex-diretora da agência.

O que fomenta o setor são recursos provenientes do FSA (Fundo Setorial do Audiovisual), abastecido com arrecadação da Condecine, uma contribuição exigida de quem distribui conteúdo audiovisual, incluindo aí empresas de telecomunicação e operadoras de televisão por assinatura.

Em 2017, esse fundo destinou cerca de R$ 748,7 milhões à atividade que, no Brasil, depende quase que inteiramente desses recursos públicos.

Para mexer no FSA, Bolsonaro teria de mudar os integrantes do comitê gestor do fundo, mas o que o presidente eleito poderia alterar é o percentual de contingenciamento desses recursos, isto é, impedir que certa proporção desse dinheiro seja executada. Atualmente, pouco mais da metade dos recursos do FSA já são contingenciados.

Membro do comitê gestor do FSA, o cineasta André Klotzel crê que existe um “pânico irracional”. “Não há motivos para que se tomem os discursos eleitorais de Bolsonaro como práticas de governo”, diz.

“Tem-se a impressão de que a esquerda é quem controla o cinema nacional. Mas, quando se olha os campeões de bilheteria nacional, o que se vê são filmes como ‘Nada a Perder’ [sobre o bispo Edir Macedo] e comédias que têm uma visão mercadológica que não tem nada de esquerdista.”

BANCADAS DA CÂMARA DEFENDEM ROUANET, MAS COM MUDANÇAS

A Lei Rouanet dificilmente será extinta nos próximos anos, se depender das principais bancadas da Câmara dos Deputados na próxima legislatura. Ela deve, no entanto, sofrer mudanças, caso isso entre em pauta no Congresso a partir do ano que vem.

Folha ouviu algumas das principais bancadas sobre o futuro do incentivo. Entre as lideranças de PT, PSD, PR, PSB, DEM, PSDB, PSOL, PCdoB e PPS —que, juntas, terão 240 parlamentares de 513 no total— nenhuma disse ser a favor de extinguir a lei, embora todos sejam favoráveis a algum tipo de mudança, radical ou parcial.

Procurados, representantes do PSL não responderam aos pedidos da reportagem. O partido tem a segunda maior bancada, com 52 parlamentares —na legislatura anterior, tinha somente um.

Embora todos tenham suas críticas à lei, as bancadas divergem quanto ao teor delas.

“Há uma avaliação de que [a Rouanet] precisa ser aperfeiçoada, talvez exatamente pelos motivos opostos [aos de Bolsonaro]”, diz Ivan Valente (PSOL-SP), cujo partido contará com dez cadeiras na Câmara. Entre as observações, ele diz que “o dinheiro é público e a escolha é privada”.

O PT, que terá a maior bancada, com 56 deputados, defende mudanças parciais e critica a concentração no eixo Rio-São Paulo e o baixo grau de incentivo a “produções culturais relevantes mas sem atratividade como iniciativa de marketing”.

“Hoje o incentivo fiscal não estimula de fato o investimento privado”, diz Paulo Teixeira (PT-SP), em referência ao baixo grau de patrocínio direto por parte de empresas privadas no setor cultural.

O petista propõe três formas de correção das “distorções” da lei. A primeira é o fortalecimento orçamentário do Fundo Nacional da Cultura. Depois a descentralização regional e um mecanismo que evite concentração de altos recursos em poucos projetos.

Por fim, pede a aprovação de um novo sistema de fomento e dá o exemplo do Procultura, projeto que já passou pela Câmara e agora aguarda apreciação pelo Senado —e também é defendido pelo PCdoB.

A iniciativa foi apresentada em 2016 pelo senador Roberto Rocha (PSB-MA), e a nova lei atacaria as falhas da Rouanet, com o intuito de promover mais equidade entre o seu tripé —o FNC (Fundo Nacional da Cultura), o incentivo fiscal e os Ficarts (Fundos de Investimento Cultural e Artístico).

Os demais partidos ouvidos pela Folha não possuem propostas tão detalhadas quanto a do PT, o que se justifica pelo fato de o partido ser o maior representante da oposição na Câmara e também porque não há nada de oficial confirmado pelo presidente eleito que diga respeito à Lei Rouanet, apenas comentários isolados.

O PSD, que terá a quinta maior bancada, diz não ver necessidade de a lei ser extinta. “Apenas é preciso que seja garantida lisura e transparência no processo para que haja justiça e pluralidade no processo de escolha das entidades beneficiadas.”

O DEM, embora defenda mudanças radicais, concorda com o PT quanto à democratização do incentivo. “Não podemos mais ver só os grandes e milionários grupos de cultura recebendo o incentivo”, afirma Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), autor do pedido de CPI da Lei Rouanet.

O relatório da CPI pediu encaminhamento ao Ministério Público das investigações realizadas sobre o desvio de recursos obtidos por meio da lei, melhoras dos mecanismos de controle, além de anunciar que seria apresentada uma proposta legislativa para alterar a Rouanet, sem revogá-la. O resultado foi a PL 7619/17, que aguarda parecer da Comissão de Cultura na Câmara.

O relator da CPI foi o tucano Domingos Sávio. Quanto ao futuro da Rouanet na nova legislatura, o PSDB diz preferir mudanças parciais, sobretudo na fiscalização.

Todos os partidos citam a concentração territorial dos incentivados pela lei. O PPS fala em “contemplar os pequenos artistas”. Tadeu Alencar, atual líder do PSB na Câmara, diz que “a cultura, num país que negligencia a atividade cultural de longa data, precisa de forte apoio do Estado”. Já para o PR, “a legislação de incentivo à cultura pode, e deve, ser aperfeiçoada”.

PERGUNTAS E RESPOSTAS

O que é a Rouanet?

O governo permite a empresas deixarem de recolher 4% de seus impostos (6% para pessoas físicas) e os repassarem a iniciativas culturais

Quem pede?

Qualquer pessoa física ou jurídica pode se cadastrar em novosalic.cultura.gov.br

Quem decide?

Os projetos são analisados pela área técnica do MinC com base em critérios como pertinência e adequação a medidas de acessibilidade. Depois, uma comissão sugere aprovação ou recusa da captação. A partir daí, o proponente deve procurar e convencer os doadores

O governo dá dinheiro?

Não, mas deixa de receber em forma de tributos

Há limites?

Grandes empresas podem, por ano, fazer até 16 projetos, somando R$ 60 milhões. Os valores mudam para instituições de menor porte

Contrapartidas

Para usar a lei é preciso atender a algumas regras, como distribuir ao menos 10% dos ingressos gratuitamente, com caráter social, educativo ou de formação artística.

Daniel Mariani , Eduardo Moura , Guilherme Genestreti , João Perassolo , Maria Luísa Barsanelli e Rafael Gregorio – Folha de São Paulo

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