Éramos governados por uma gente do porão, diz Gilmar sobre complô golpista

Decano do Supremo Tribunal Federal, o ministro Gilmar Mendes disse nesta sexta (3) que o caso denunciado pelo senador Marcos do Val (Podemos-ES) mostra que “a gente estava sendo governador por uma gente do porão”, ligada “às milícias do Rio de Janeiro”.

Do Val, em um vaivém de versões, relata que teve uma reunião com o então presidente Jair Bolsonaro (PL) e o ex-deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) no fim do ano passado no qual foi discutido um complô golpista para reverter o resultado das eleições vencidas por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em outubro.

O senador tentou mudar de versão, isentando Bolsonaro de iniciativa do esquema, que seria ideia de Silveira, preso por ordem do Supremo na quinta (2).

A trama incluiria fomentar as concentrações golpistas em frente a quartéis e a gravação ilegal de alguma inconfidência do presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro do Supremo Alexandre de Moraes.

“Vamos esperar o resultado das investigações, mas essas pessoas [Do Val e Silveira] se comunicaram”, afirmou Gilmar, citando os áudios e prints de mensagens divulgados pela revista Veja.

“O que [o episódio] mostra é que a gente estava sendo governado por uma gente do porão. Esse é um dado da realidade. Pessoas da milícia do Rio de Janeiro, com contato na política internacional, isso é o que resulta quando vemos a nominata desses personagens”, disse.

Gilmar falou antes e durante uma conferência sobre política e economia do Lide, grupo empresarial fundado pelo ex-governador paulista João Doria, em Lisboa.

Para o ministro, “as instituições foram o alvo predileto das vivandeiras alvoraçadas”, parafraseando a famosa citação do ditador Humberto Castello Branco de 1964, aludindo aos políticos que incitavam agitação nos quartéis.

Ele criticou a elite política na era do bolsonarismo, que alimentava “zumbis consumidores de desinformação”. “Espero que as investigações identifiquem quem estava no topo dessa pirâmide e qual lucro auferiam, política ou economicamente”, disse.

A crítica aberta ao “éthos” bolsonarista foi completada com uma crítica ao ex-chanceler Ernesto Araújo. “Nunca mais voltemos a ser um pária internacional, objetivo vocalizado por um certo expoente de uma certa doutrina”, afirmou.

O ministro disse, contudo, estar otimista. “Apesar de a extensão do dano ser grande, seu conserto é possível. O Brasil tem a capacidade singela de se reinventar”, afirmou. Ele discorreu acerca da necessidade de haver “regras do jogo estáveis”, apesar do risco dos “impulsos ditatoriais”.

Por fim, fez uma mesura ao governo Lula, dizendo que “o Brasil voltou ao cenário internacional”.

Diferentemente do evento anterior do Lide, em novembro em Nova York, não foram registrados ainda protestos de bolsonaristas contra a presença de ministros do Supremo no encontro —também está na capital portuguesa Ricardo Lewandowski, enquanto Moraes e Luís Roberto Barroso irão participar de forma remota.

O decano do Supremo também disse, em uma entrevista ao jornal português Expresso publicada nesta sexta, que Bolsonaro flertou com a ideia de um golpe militar.

“Não creio que tenha sido cogitado [um golpe das Forças Armadas]. Embora seja muito provável que o entorno do ex-presidente, e o próprio, tenham flertado com a ideia”, afirmou ao jornal.

Gilmar descarta, contudo, envolvimento institucional das Forças com intentonas golpistas ou os ataques bolsonaristas às sedes dos três Poderes em 8 de janeiro.

Em sua intervenção, Barroso afirmou que os anos sob Bolsonaro, a quem não nomeou, foram “um período grande de déficit de civilidade, de extração do que de pior havia nas pessoas”, disse.

“Um momento de desprezo à educação, uma visão de armas em vez de bibliotecas, descrédito à ciência. Isso culminou no 8 de janeiro”, disse.

Para ele, a convulsão golpista foi “um processo histórico, antecedido por ataques às instituições, pela politização das Forças Armadas, que incluiu a defesa da volta do voto impresso”.

“Imagine o que seriam as seções eleitorais com contagem manual com essa gente, muitas vezes armada, tumultuando”, disse, criticando o “estilo Roberto Jefferson [ex-deputado preso por atirar em policiais] e Daniel Silveira [deputado preso no inquérito das fake news]”.

TEMER DEFENDE SEMIPRESIDENCIALISMO

“Quem sabe nós tivéssemos uma revolução das rosas no Brasil, ou lírios, e deixar para trás os espinhos”, afirmou o ex-presidente Michel Temer (MDB) na abertura da conferência em Lisboa, após falar sobre a Revolução dos Cravos de 1974, que enterrou décadas de ditadura em Portugal.

Temer voltou a defender o semipresidencialismo como solução para as crises políticas no Brasil, citando a alternância de governos em Portugal, que tem um parlamentarismo com presidente mais forte do que o usual chefe de Estado anódino do sistema.

“Precisamos acabar com os traumas institucionais”, diz o ex-vice de Dilma Rousseff (PT) que assumiu após o impeachment da presidente em 2016 e governou até o fim de 2018, sugerindo que para isso a mudança do sistema de governo brasileiro seria necessária. “Aí poderemos voltar a falar de flores”, disse.

“Proponho novo sistema, não é para dar golpe no governo, é para 2030”, disse Temer, rindo, ao ser questionado sobre isso depois.

Abordado por jornalistas antes do evento, Temer perguntou se Lula “havia falado de golpe de novo”, referência à crítica feita a ele pelo presidente, que o chamou de golpista em duas ocasiões recentes.

Comentando na sessão de debate a questão do semipresidencialismo, Gilmar citou os impedimentos de dois presidentes na história recente (Dilma e Fernando Collor, este em 1992).

“Quem perde apoio no Congresso, acaba por sofrer o impeachment”, disse, defendendo a ideia da adoção de um primeiro-ministro. O ministro fez uma comparação jocosa entre a formação do ministério de 37 pastas de Lula e a “geringonça”, coalizão que governou Portugal unindo facções diversas da esquerda.

Temer criticou o excesso de partidos no país, dizendo que o ideal de um bipartidarismo aconteceu, ainda que de forma forçada, “durante o golpe de Estado” de 1964 —brincando com os jornalistas, dizendo que não estava “defendendo a revolução”.

Em sua fala, Lewandowski citou a crise que culminou no ataque golpista de 8 de janeiro em Brasília. “O Brasil sobreviveu ao 8 de janeiro, quando as sede dos três Poderes foram invadidas e destruídas. A democracia é resiliente e sobreviveu a esse ataque”, disse. “A democracia saiu mais forte.”

Ele fez uma defesa da Justiça Eleitoral. “Todos [os integrantes do TSE] têm mandato, de dois anos, o que impede a politização”, afirmou.

Também presente à conferência, o ministro Humberto Martins (Superior Tribunal de Justiça), fez uma defesa da segurança jurídica amparada na palavra final do Supremo. “Os poderes constituídos no Brasil funcionam”, afirmou.

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