Em luta por poder no Vaticano, conservadores tentam ligar abusos a gays

Polêmicas do papa Francisco

Desde o início de seu papado, Francisco enfureceu os conservadores católicos por defender uma igreja mais receptiva e afastá-la das questões das culturais, como o aborto ou a homossexualidade.

“Quem sou eu para julgar?”, disse o papa certa vez , quando perguntado sobre os padres gays.

O tamanho da irritação de seus inimigos políticos e doutrinários ficou claro no último fim de semana, quando uma carta cáustica publicada pelo ex-principal diplomata do Vaticano nos EUA culpou pelos abusos sexuais uma “corrente homossexual” na hierarquia da igreja.

A carta pedia a renúncia de Francisco, acusando-o de encobrir um cardeal que caiu em desgraça, Theodore McCarrick.

Com a carta —divulgada durante a visita do papa à Irlanda—, uma oposição com motivação ideológica transformou em arma a crise de abusos sexuais da igreja para ameaçar não somente a agenda de Francisco, mas todo o seu papado. No mínimo, ela trouxe para o centro do debate o tema da homossexualidade na Igreja Católica, que muitos conservadores acreditam estar por trás da crise de abusos.

As intrigas e lutas por poder no Vaticano não são novidade, mas geralmente ficam dentro de seus muros medievais ou voam acima das cabeças dos fiéis católicos do mundo todo.

Esta batalha, porém, está sendo travada de uma maneira excepcionalmente aberta e brutal. Ela é alimentada pela mídia da era moderna, a relutância do papa em calar seus críticos e uma questão —o abuso sexual de crianças— que, talvez mais que qualquer outra, provocou deserções entre os fiéis.

As acusações na carta continuam sem comprovações. Indagado no domingo à noite (26) sobre sua validade, Francisco disse que não daria a dignidade de uma resposta.

Mas elas são sérias, e a resposta vaga do papa só aumentou o interesse do público, particularmente na acusação principal —de que ele sabia da história de relações sexuais de McCarrick com seminaristas e não fez nada a respeito.

“É um problema sério”, disse Sandro Magister, um observador veterano do Vaticano na revista L’Espresso, segundo o qual o notável ataque público é um indício da enorme frustração entre os conservadores em relação a Francisco. Ele duvida de que o papa, que basicamente ignorou esses tiros no passado, conseguirá fazer o mesmo desta vez.

“Com esta questão”, disse Magister, “o impacto público é muito mais forte, e nesse campo ele está bastante vulnerável.”

A não resposta de Francisco combina com sua relutância em dar oxigênio a um grupo pequeno —embora influente e ruidoso— de prelados e escritores conservadores alinhados com o autor da carta, o arcebispo Carlo Maria Viganò, ex-principal diplomata do Vaticano nos EUA.

Francisco removeu do cargo ou pôs de lado adversários ideológicos na burocracia da igreja, mas também tem sido mais disposto que seus antecessores a permitir o debate aberto e até a dissidência. Muitos o desafiaram, às vezes em linguagem rude, por sua abertura a tornar algumas práticas da igreja menos rígidas, entre elas a proibição de que paroquianos divorciados ou casados de novo recebam a comunhão.

Na segunda-feira (27), apoiadores de Francisco rejeitaram a carta como mais um ataque desesperado de conservadores frustrados que ainda não se habituaram a ser contrariados. Eles manifestaram confiança em que suas acusações seriam desmentidas.

Alguns sobreviventes de abusos, que têm pressionado Francisco para tomar medidas concretas sobre a crise, em vez de apenas pedir desculpas, embora sentidas, afirmaram que a carta de Viganò explorou o abuso com fins políticos. A carta não demonstrou, segundo eles, especial preocupação pelas dificuldades das crianças da igreja.

O escândalo de abuso sexual de crianças chamou a atenção dos católicos do mundo, mas a mudança na direção da igreja sob Francisco animou seus inimigos. Eles acreditam que a mensagem de inclusão do papa está minando antigas regras da igreja, e que está levando a confusão e talvez a um cisma.

A explosão de blogs católicos conservadores —muitos deles nos EUA— em uma era em que a notícia se espalha rapidamente, assim como a divulgação em momento estratégico da carta se combinaram para formar uma poderosa ação contra o pontífice de 81 anos.

“Sejamos claros que elas ainda são alegações, mas como seu pastor eu as considero verossímeis”, disse o bispo conservador Joseph Strickland, de Tyler, no Texas, em uma carta aberta a sua diocese. “Emprestarei minha voz no que for necessário para pedir essa investigação, e que suas conclusões exijam a responsabilização de todos os considerados culpados, mesmo nos mais altos níveis da igreja.”

Se Francisco pensou que o debate sobre homossexualidade na igreja era coisa passada, os acontecimentos desta semana sugerem que não.

“As redes homossexuais presentes na igreja devem ser erradicadas”, escreveu Viganò, afirmando que foi a causa originária do abuso.

O escândalo de abusos já provocou um forte debate em revistas católicas e entre igrejas. Alguns críticos da igreja culparam os votos de celibato, afirmando que suprimir a libido humana pode levar a pedofilia e estupro.

Na Conferência das Famílias Católicas, um evento conservador rival do Encontro Mundial de Famílias realizado em Dublin no fim de semana, os organizadores acharam insatisfatória a recente condenação pelo papa dos abusos, porque não destacou a homossexualidade. Esta, segundo eles, transformou os seminários em “esgotos”.

O cardeal Wilfrid Napier, da África do Sul, também culpou a homossexualidade pelo escândalo. E o cardeal Raymond Burke, um dos maiores conservadores do Vaticano e importante crítico do papa, denunciou o que ele considera “o grave problema de uma cultura homossexual na igreja”. O problema, disse ele, não está só entre o clero, “mas até na hierarquia, que precisa ser purificada na raiz”.

Em 2005, o Vaticano declarou que até gays celibatários não deviam ser padres, e instruiu os líderes da igreja a rejeitar inscrições nos seminários de homens que “praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais enraizadas ou apoiam a chamada ‘cultura gay'”.

Os críticos de Francisco acreditam que um encontro em Roma de bispos do mundo todo, em outubro, sobre o tema da juventude poderá se tornar um campo de batalha. Eles querem garantir que a oposição da igreja à homossexualidade esteja no radar se a questão do abuso sexual for levantada, o que certamente acontecerá.

Em maio, Francisco teria dito a bispos italianos que quando se trata de candidatos a seminaristas potencialmente gays, “se houver a mais ligeira dúvida é melhor não aceitá-los”.

Mesmo assim, Viganò e seus aliados afirmaram que o papa e seus apoiadores aceitam demais os gays na igreja e ignoram à vontade que a vasta maioria das vítimas de abuso sexual por padres são homens.

A maioria dos especialistas recusa a combinação de homossexualidade e pedofilia como um caminho perigoso para o preconceito contra os gays. Fora da igreja, essa ideia foi amplamente desacreditada como retrógrada.

Mas ela ainda tem força no Vaticano. Muitos aqui acreditam que uma investigação feita por três cardeais depois do escândalo do Vatileaks em 2012 —com base em memorandos vazados do mesmo Viganò que escreveu a carta de domingo— revelou que um lobby gay trabalhava na Santa Sé e que seu relatório contribuiu para a aposentadoria do papa Bento 16.

O relatório continua mantido em segredo pelo Vaticano, mas em sua carta Viganò incluiu um naipe de nomes e aliados visados de Francisco que compartilham as opiniões do papa.

Ele disse que o cardeal Blase Cupich, de Chicago, estava “cego por sua ideologia pró-gay”. E discutiu a afirmação de Cupich, um ex-presidente do Comitê de Proteção a Crianças e Jovens, “que o principal problema na crise de abuso sexual pelo clero não é a homossexualidade, e que afirmar isso é apenas uma maneira de desviar a atenção do verdadeiro problema, que é o clericalismo”.

Em uma entrevista no domingo (26), Cupich disse: “Acho que é errado fazer dos gays e homossexuais bodes-expiatórios, como se houvesse maior probabilidade de os gays ofenderem crianças do que pessoas hétero. Os dados não mostram isso”.

A carta de Viganò também lamentou que o Vaticano tenha trazido o padre jesuíta James Martin, que escreveu um livro sobre como fazer o gays católicos se sentirem mais à vontade na igreja, como consultor da Secretaria de Comunicações.

A igreja sob Francisco, escreve Viganò, “escolheu corromper os jovens que em breve se reunirão em Dublin para o Encontro Mundial de Famílias”, ao convidar Martin para falar lá.

Em uma entrevista, Martin disse: “O motivo pelo qual parece que todos os padres gays são abusadores é que não há contraexemplos públicos de padres gays celibatários saudáveis, porque a maioria dos padres gays tem medo de se revelar nesse ambiente venenoso”.

THE NEW YORK TIMES

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.